Em webinar, consultoria de inteligência de mercado se baseia em teoria desenvolvida pelo Nupens/USP para apontar caminhos para a indústria de alimentos

Consumidor está mais preocupado com a ingestão de alimentos
livres de aditivos comumente empregados pela indústria

Há cerca de dez anos, o primeiro artigo científico sobre o conceito de ultraprocessamento de alimentos era publicado. Pioneiro, o artigo propôs uma nova forma de classificar os diferentes tipos de alimentos — não por nutrientes, como se fazia até então, mas pelo nível de processamento. De lá para cá, a classificação foi incorporada no Guia Alimentar do Ministério da Saúde no Brasil e a seguir em outros países, ganhou força com pesquisas realizadas nos Estados Unidos e Europa e, agora, começa a promover mudanças globais em governos e na indústria de alimentos.

Na última semana, a consultoria Euromonitor International — que elabora pesquisas para dar suporte estratégico a empresas de diversos setores — transmitiu um o webinar “Regulação da comida e o futuro da comida ultraprocessada”, no qual a classificação desenvolvida pelo Nupens/USP (NOVA) serviu de base para a análise das tendências no setor alimentício. O vídeo e a apresentação (ambos em inglês) podem ser baixados no site da consultoria.

Retrato da alimentação global

Segundo pesquisas da Euromonitor, na última década o consumo de comidas e bebidas ultraprocessadas tem aumentado nos últimos anos, o que teria relação com um crescente processo de urbanização observado em diversas regiões do mundo. Populações têm se mudado para grandes centros, onde o estilo de vida pede por soluções alimentares mais rápidas e convenientes e o acesso aos produtos ultraprocessados é facilitado.

Em 2019, a consultoria identificou as principais barreiras que os consumidores enfrentam para melhorar a qualidade da alimentação. Entre elas, nesta ordem, estavam alegações de preço alto dos alimentos considerados saudáveis, a falta de tempo para cozinhar, a conveniência do ultraprocessado, não gostar de alimentos saudáveis e não ter aptidão para a cozinha.

Os dados foram apresentados junto a um gráfico que mostrava o crescimento dos casos de obesidade em todo o mundo — situação definida como alarmante pela Euromonitor. As projeções para 2030 preveem o aumento em todas as regiões, com destaque para América do Norte, Australásia e Europa Ocidental. A América Latina está em posição intermediária. Países como Indonésia, Índia e Brasil apareceram como nações mais voltadas ao consumo de alimentos in natura, provavelmente por serem culturas historicamente ligadas à cozinha — vide a nossa essencial combinação de arroz e feijão.

O webinar trouxe, ainda, estudos da Universidade de Paris, na França, e da Universidade de Navarra, na Espanha, que associam o consumo de ultraprocessados ao maior risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares e de morte, respectivamente. Como resultado, a Euromonitor afirma que existe uma tendência de os consumidores buscarem alimentos mais naturais.

A indústria e a classificação NOVA

Ao explicar as bases da classificação NOVA e o seu uso no Guia Alimentar para a População Brasileira, o webinar apresentou críticas que a indústria de alimentos recorrentemente faz em relação à classificação. Essas críticas envolvem alegações de que a NOVA ignoraria benefícios do processamento de alimentos (como segurança alimentar, qualidade do alimento, baixo custo e conveniência) e de que a relação entre consumo de ultraprocessados e doenças seria questionável.

Os benefícios do processamento de alimentos têm sido sistematicamente considerados em todas as publicações científicas sobre a classificação NOVA e também em publicações destinadas ao público em geral, incluindo o próprio Guia Alimentar para a População Brasileira. Este recomenda o consumo de uma grande diversidade de alimentos frescos ou minimamente processados, preparados com ingredientes culinários processados e complementados com alimentos processados, proscrevendo apenas o consumo de alimentos ultraprocessados. Portanto, a crítica sobre a não consideração dos benefícios do processamento de alimentos simplesmente não procede.

A alegação de que a relação entre consumo de alimentos ultraprocessados e doenças não estaria ainda bem estabelecida vem sendo repetida pela indústria desde que o conceito de alimento ultraprocessado foi proposto há cerca de dez anos. Esta alegação nos primeiros anos posteriores à proposição do conceito fazia sentido pois os estudos sobre o impacto de alimentos ultraprocessados na saúde eram poucos e restritos ao Brasil. Mas, nos últimos cinco anos, esta alegação perdeu o sentido com dezenas de estudos realizados em vários países e envolvendo várias modalidades de delineamentos, incluindo grandes estudos longitudinais e um ensaio clínico controlado. O conjunto dos resultados desses estudos, compilado em publicação da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) divulgada em 2019, mostra de forma inequívoca que o consumo de alimentos ultraprocessados aumenta o risco de um grande número de doenças crônicas, incluindo a obesidade, o diabetes, a hipertensão, as dislipidemias, as doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer, além de determinar aumento da mortalidade precoce por todas as causas.

Impactos regulatórios

Com o aumento real da obesidade em diversas regiões do mundo e uma projeção não otimista do impasse, a Euromonitor enxerga um movimento dos governos para evitar que a situação se agrave e, consequentemente, gere um aumento expressivo nos custos relacionados à saúde.

Neste contexto, a regulação pode ficar mais rígida em quatro quesitos — sendo que alguns deles já têm movimentos ocorrendo em alguns países. A discussão mais avançada é a que envolve a rotulagem de alimentos, com destaque para a ação que ocorreu no Chile. O país tornou obrigatória a aplicação de um selo nas embalagens para alertar consumidores sobre o alto teor de sal, açúcar e gordura dos produtos ultraprocessados. No Brasil, a Anvisa analisa a questão, ponderando qual seria o modelo ideal para organizar estas informações nos rótulos.

Além disso, a Euromonitor aponta para as taxações sobre alguns ingredientes, como o açúcar, e prevê a possibilidade de outros aditivos entrarem na mira dos governos. Segundo a consultoria, isso pode ocorrer com o sal, colocando desafios aos produtores de ultraprocessados.

A publicidade e a distribuição dos alimentos também foram citadas no webinar, com exemplos do Reino Unido, que baniu o uso de personagens infantis nas embalagens de cereais (em geral, com alto teor de açúcar). A consultoria informou sobre o fato de alguns países banirem ultraprocessados de cantinas escolares como uma forma de proteger crianças.

A alimentação no futuro

De acordo com uma pesquisa publicada pela Euromonitor em 2017, as gerações mais jovens, como a Z e os millennials, têm menos interesse em cozinhar, o que esbarra no aumento do consumo de ultraprocessados. O dado muda de acordo com o país — enquanto Estados Unidos, Reino Unido e Japão são grandes consumidores desse tipo de alimento, o Brasil vive uma situação menos crítica.

A popularização da NOVA fora das fronteiras brasileiras deve gerar um desafio à indústria de alimentos, já que, apesar de as novas gerações não estarem propensas a cozinhar, a tendência é a escolha por refeições saudáveis que ofereçam praticidade. Neste sentido, a consultoria citou alguns exemplos de alimentos que seguem esta linha, como um iogurte feito à base de plantas com ingredientes 100% naturais e uma bandeja com produtos minimamente processados de uso facilitado para cozinhar em casa.

Apesar destas opções, a Euromonitor afirmou, no webinar, que as mudanças devem ter grande impacto na indústria de alimentos porque, mesmo com os esforços para a redução ou eliminação de ingredientes e aditivos, é difícil fazer com que eles deixem de ser ultraprocessados e passem a se enquadrar em outras categorias da NOVA. Ainda assim, a indicação da consultoria é a de que as empresas devem voltar esforços para a produção de alimentos frescos.