O distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19 fez com que boa parte da população ficasse em casa por meses, expondo nossa maneira de lidar com uma série de questões. Entre elas, é claro, a alimentação.

Se, antes, as refeições seguiam uma rotina pré-definida, durante a quarentena foi preciso fazer adaptações. Quem sabia cozinhar teve mais autonomia. Quem não sabia, ou correu para aprender ou ficou dependente dos serviços de entrega — e dos ultraprocessados.

Mas e quando se tem filhos? O domínio de habilidades culinárias dos pais pode impactar na qualidade da alimentação das crianças?

A pergunta foi feita (antes da pandemia) pela pesquisadora do Nupens Carla Martins, e deu origem ao artigo “Healthy”, “Usual” and “Convenience” cooking practices patterns: how do they influence children’s food consumption? (“Padrões culinários saudável, convencional e conveniente: como influenciam o consumo alimentar das crianças?” em tradução livre). O trabalho teve apoio do CNPq e foi recém-publicado na revista científica britânica Appetite.

A pesquisa é assinada em conjunto com outras seis pesquisadoras. Leia a íntegra do estudo (em inglês).

 

O estudo

Os dados analisados foram obtidos de estudantes do 1º ao 4º ano de nove escolas privadas da Grande São Paulo e suas famílias. A alimentação dos alunos foi identificada por meio de recordatórios alimentares, e os responsáveis pelas refeições realizadas em casa responderam a questões sobre suas habilidades culinárias.

Os adultos foram divididos em três grupos, de acordo com as técnicas que dominavam e a segurança na cozinha, entre outras informações. Basicamente, os grupos foram classificados da seguinte forma:

Cozinha saudável: segurança para cozinhar uma grande variedade de refeições utilizando alimentos in natura ou minimamente processados, além do domínio de técnicas que dispensam a adição de gordura

Cozinha convencional: planejamento semanal de compras de alimentos, segurança na preparação de refeições diárias e domínio de diversas técnicas culinárias 

Cozinha conveniente: finalização de refeições prontas e uso de ultraprocessados (como adição de temperos prontos ou aquecimento de alimentos já preparados)

O resultado da análise mostrou que filhos de pessoas pertencentes ao padrão de cozinha saudável consomem menos ultraprocessados, enquanto a relação oposta foi registrada para o padrão de cozinha conveniente.

A pesquisa aponta, no entanto, que o ato de cozinhar em casa não é suficiente para reduzir o consumo de ultraprocessados entre crianças, o que seria mais garantido quando adultos mantêm o hábito de cozinhar “do zero”, levando em conta cada ingrediente adicionado no preparo.

 

Cozinha brasileira

O artigo mostra, ainda, que cerca de um terço das calorias consumidas pelas crianças é composta de produtos ultraprocessados.

“Ao mesmo tempo em que isso era esperado, é surpreendente”, diz Carla Martins. “Comparado a países como EUA ou Reino Unido, o Brasil ainda tem sua alimentação baseada em ingredientes in natura ou minimamente processados. No entanto, temos observado, nas últimas décadas, o aumento da compra e do consumo de ultraprocessados.”

Para ela, o incremento no uso de alimentos do quarto grupo da classificação NOVA (os ultraprocessados) tem impacto relevante tanto na cultura alimentar brasileira quanto na saúde e desenvolvimento das crianças.

“Quando incorporados nas refeições das populações, os ultraprocessados potencializam a transferência de tarefas da cozinha doméstica para a indústria alimentícia”, diz. “Com isso, acabam fomentando um movimento de ‘homogeneização’ das dietas das populações, que ajuda a criar uma ‘cultura alimentar globalizada’.”

Um exemplo disso é a incorporação de temperos prontos. Se, antes, cada família produzia suas refeições com sua própria combinação singular de ervas e condimentos, o uso de temperos ultraprocessados deixa os pratos com sabor próximo, ainda que sejam preparados em regiões diferentes do país.

Em relação à saúde infantil, Martins destaca que a literatura científica vem apontando os efeitos deletérios do consumo de ultraprocessados. “Ingeridos em excesso, podem causar aumento no colesterol total e LDL, aumento da circunferência da cintura e até mesmo asma e chiado no peito.”

 

Cozinhar “do zero”

A pesquisadora reconhece, no entanto, que, para preparar as refeições “do zero”, é necessário ter uma série de condições que tornem a prática possível. A começar pela acessibilidade física e financeira: no ambiente alimentar, as opções in natura ou minimamente processadas devem ser as escolhas mais fáceis.

Além disso, é importante que ações e políticas públicas valorizem, incentivem e apoiem práticas culinárias saudáveis, ao mesmo tempo em que desestimulem a substituição de refeições por produtos ultraprocessados.

“E, no cotidiano, é necessário cozinhar!”, incentiva Martins. “Quanto mais se cozinha ‘do zero’, mais habilidades culinárias são desenvolvidas e mais fácil fica a prática culinária, o que reduz a dependência de ultraprocessados.”

Uma saída para aprimorar o tempo dedicado à cozinha é seguir as dicas do Panelinha, site da cozinheira e apresentadora Rita Lobo, parceiro do Nupens, e que ensina a montar boas refeições desde a lista de compras até o momento de lavar a louça.

Leia a íntegra do estudo de Carla Martins (em inglês).