CPaS-1 – Coletive de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde Pública

Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha

Escrito por Maria Fernanda, estudante de Saúde pública da Universidade de São Paulo.

Confesso que antes de adentrar ao mundo acadêmico meu maior receio se concentrava na possibilidade de “exclusão afetiva”. Ou seja, não conseguir construir laços de amizade. Seja pela minha personalidade reservada e/ou negritude e gênero num país estruturalmente racista, o fato é que o frio na barriga aumentou quando da semana de recepção para os calouros eu me vi cercada de estudantes brancos. A sensação piorou quando fui a primeira festa da faculdade: além da quase inexistência de corpos negros, a exclusão por não ser o padrão de beleza e por não compartilhar dos lendários vícios da juventude que são a bebeida alcóolica e outras drogas (lícitas e ilícitas).   

A origem desse receio provém do dilema de pertencer ou não pertencer a determinados espaços; de se sentir parte deles ou não. Com o passar do tempo a universidade me mostrou que enquanto os corpos que ocupam os lugares de decisão nessas instituições forem majoritariamente brancos e cis, isso contribui  pouco ou quase nada para o combate ao racismo no Brasil. Enquanto a epistemologia branca, ocidental e colonizadora se mantiver no centro do ensino superior sendo considerada a única fonte de conhecimento, as transformações necessárias para que a Universidade reflita a heterogeneidade da sociedade brasileira permanecerão no horizonte. Por isso, “baixar a guarda” dentro desses espaços (e fora deles também) para nós, pessoas negras, nunca foi (e nunca será) uma opção. Talvez as palavras “sufocante” e “exaustivo” sejam as principais definidoras da sensação de ocupar a instituição que forma a “elite intelectual brasileira” (palavras que ouvia constantemente de professores de cursinhos pré-vestibulares). 

Enquanto mulher negra esse cansaço e sufocamento apertam um pouquinho a cada dia: na inexistência de uma mulher negra no corpo docente, do apagamento de referências negras em qualquer tema abordado, da ausência de estudos de saúde da população negra numa faculdade que é referência centenária em saúde, da inexistência de um núcleo de estudos afro brasileiros, dentre outros. Além disso, o fato do racismo brasileiro ser da ordem do fenótipo, por meio de olhares direcionados nós não conseguimos nos esconder de demandas como letramento de colegas de classe/docentes sem qualquer remuneração por isso, por exemplo. Ou ainda, quando somos obrigados a apresentar algum tema racial porque nossos colegas não negros de turma não se sentem “aptos” a apresenta-lo. 

Assim, o racismo vai nos roubando aos poucos: nosso tempo, lazer, dinheiro, estudo, vitalidade, saúde. Carregamos o peso da sociedade nas nossas costas, sozinhas. Enquanto estudantes não negros se preocupam pura e exclusivamente com sua média ponderada e festas nos institutos, nós nos preocupamos com tudo isso e mais todas as problematizações supracitadas. Se escolhemos nos agrupar em coletivos negros como forma de cuidado e acolhimento, o corpo docente entende que todas as demandas raciais são de nossa responsabilidade se eximindo da responsabilidade de entendê-las, estudá-las, pautá-las e defendê-las nos espaços de decisão.   

Dessa forma eu pergunto: como manter o equilíbrio emocional numa estrutura que a todo tempo não reconhece as nossas vivências e experiências como conhecimentos válidos para serem constituidores de saberes epistêmicos? Como conseguir passar pela experiência acadêmica sem sentir o peso, o cansaço, a carga de ser um corpo negro nesse espaço? Como conseguir construir relações afetivas/intelectuais/de cuidado num ambiente que não reflete a heterogeneidade populacional do Brasil? Como existir num local onde nada converge para afirmar e assegurar a existência dos nossos corpos negros?

Tensionar ou não tensionar; brigar ou não brigar; pautar ou não pautar etc. Todos esses dilemas estão entranhados em nós, sem perspectiva de saída. Então nesse dia 25 de julho, dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, o que me vem à mente é a famosa frase de Jurema Werneck “nossos passos vem de longe”. Isso significa que para estarmos vivas hoje ocupando os diferentes espaços na sociedade (inclusive a universidade) muitas de nós ficaram pelo caminho. Então é nossa obrigação ancestral sermos felizes (seja lá o que isso signifique). 

Relações afetivas são mitos, e em que narrativas de uma pretensa igualdade racial ainda perduram no senso comum. Há ainda pouco entendimento sobre como esse discurso vai se formando, se reformando e se reafirmando nas relações privadas, pessoais.Compreender processos de microssocialização, como os são as relações afetivas, podem nos dizer muito sobre a dinâmica das relações raciais brasileiras, bem como sobre a posição e a perspectiva da mulher negra nesse processo. Do mesmo modo em que a afetividade não é apenas pautada pelo sentimento/amor, também não pode ser explicada satisfatoriamente por seu viés economicista/ utilitarista. Há nessas escolhas preferências sociais, políticas, culturais e étnicas que merecem ser objeto do interesse sociológico. O desejo e o envolvimento afetivo, como afirma Elisabete Pinto (2004), são permeados pelos valores e ideais estabelecidos pelo contexto social. Os vínculos amorosos são também determinados por concepções advindas de uma organização social machista e racista, e se explicam tanto pela história subjetiva das mulheres negras quanto pelo histórico-social em que o contexto de suas vidas está inserido. bell hooks (2010) afirma que o sistema escravocrata e a organização social racista que parte dele criaram entraves para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Na expressão de hooks (2010), esses entraves se desdobraram em uma verdadeira ferida emocional na população negra, que dificulta aos negros e negras o desenvolvimento do amor interior (a estima de si) e, da mesma forma, a estima daquele que é o seu espelho.

Nesse sentido, saber reprimir as emoções foi – e ainda é – um instrumento de sobrevivência à escravidão e, posteriormente, ao racismo. Em um contexto em que se está submetido às forças de repressão das emoções como garantia de resistência, o amor torna-se um luxo. Por outro lado, as formas de pobreza e marginalização a que foram submetidas as pessoas negras no período pós-abolição contribuíram para a confusão ou talvez a fusão entre os significados de amar e prover. Os atos e expressões de afetos seriam assim substituíveis pelos meios materiais de subsistência: amar os filhos, por exemplo, se confunde em dar-lhes o que comer, e isso basta como aprendizado afetivo (hooks, 2010).

Para Audre Lorde (2007), não é possível que os negros e negras continuem seguindo suas vidas e negando os sentimentos mais profundos, pois isso é viver mutilado. São nos sentimentos que residem a nossa criatividade e a nossa força para enfrentar o mundo. Sentimentos não são um luxo, mas uma necessidade. O silêncio é muito mais opressor e se calar não faz desaparecer o medo. O silêncio, como afirma Audre Lorde (2007), não nos protege.

É impossível dizer que escolhas do campo afetivo e sexual sejam mera questão de gosto pessoal, como se este estivesse completa e plenamente desconectado do universo social em que o indivíduo está inserido. A relação com o outro está permeada de valores, ideais, representações, contextos sociais que merecem ser conhecidos.

2 comentários em “Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha”

  1. O mais importante é não esquecer quem somos e de onde viemos, negar suas raízes é viver na ilusão de ser outra pessoa, de se projetar no outro.
    Parabéns pelo belo texto.

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