Chegou no Brasil o livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” do médico e comunicador Chris van Tulleken, editado pelo O Joio e O Trigo em parceria com a Editora Elefante. A obra é um relato pessoal do autor, que duvidou da teoria de Carlos Monteiro, coordenador emérito do Nupens/USP, sobre o impacto dos ultraprocessados na saúde. Tulleken decidiu, então, alimentar-se de ultraprocessados por algumas semanas, e experimentar os efeitos em seu próprio corpo. O prefácio da edição brasileira é de Carlos Monteiro. Confira abaixo:
“Em muitas das várias entrevistas que venho concedendo a jornais impressos, telejornais e documentários nos últimos anos, duas perguntas têm sido constantes. A primeira é sobre como foi o momento “Eureka!”, quando teriam sido definidos o conceito de alimento ultraprocessado e a hipótese — hoje bem-comprovada — de que o aumento no consumo desses alimentos seria uma das causas da pandemia de obesidade. A segunda é por que esse conceito e essa hipótese tiveram origem em um núcleo acadêmico da Universidade de São Paulo, e não em núcleos de instituições americanas ou inglesas, que tradicionalmente respondem pelos maiores avanços na pesquisa sobre alimentação, nutrição e saúde.
A resposta à primeira pergunta você encontra nas próximas páginas, na narrativa precisa e saborosa de Christopher van Tulleken e, portanto, não vou repeti-la aqui. Alguns elementos que ajudam a responder à segunda pergunta também estão no livro, mas detalho, aqui, os três que me parecem mais importantes.
O primeiro é o fato de que o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), que concebeu o conceito de alimento ultraprocessado e a hipótese de sua relação com a pandemia de obesidade, nasceu, há mais de trinta anos, em uma faculdade de saúde pública. E não, como é mais frequente no Brasil e em outros países, em uma escola médica.
Trata-se de um detalhe importante. No campo da saúde pública, pesquisas são, por natureza, transdisciplinares. Focam em identificar os fatores ambientais (físicos, socioeconômicos, culturais) que determinam a incidência das doenças na população — sobretudo aquelas que apresentam alta frequência ou que evoluem de forma epidêmica. A partir da identificação desses fatores, são propostas medidas e políticas públicas necessárias para modificar o ambiente e prevenir as doenças.
A pesquisa médica, por sua vez, busca entender a fisiopatologia das doenças. Por que e como, em determinados ambientes, algumas pessoas (ou organismos humanos) adoecem e outras não. Esse conhecimento abre caminhos para a proposição e avaliação de esquemas terapêuticos que visam tratar ou controlar a doença no indivíduo.
Não surpreende, portanto, que uma faculdade de saúde pública tenha sido o berço do conceito de alimentos ultraprocessados e da hipótese de seu vínculo com a pandemia de obesidade. Da mesma forma, não deve surpreender o fato de que descobertas sobre a regulação do balanço energético e novas alternativas para o manejo clínico da obesidade surjam em faculdades de medicina.
Para além de integrar uma faculdade de saúde pública, o Nupens/USP, desde sua criação, tem como uma de suas linhas de investigação o estudo de determinantes da evolução de problemas de saúde. Incluem-se aí pesquisas sobre as causas das grandes variações temporais da mortalidade infantil na cidade de São Paulo no século 20 e do excepcional declínio da desnutrição infantil no Brasil na primeira década do século 21. Eis o segundo elemento: a experiência acumulada na identificação de fatores que determinam a evolução da saúde de uma população.
Para identificar as causas da evolução da mortalidade e da desnutrição, quantificamos o risco dessas condições em função de seus principais determinantes — no caso, renda familiar e acesso a serviços públicos de saúde, educação e saneamento. Na sequência, resgatamos a evolução temporal desses determinantes no período de interesse. Por fim, modelamos a variação esperada nos problemas de saúde em função da evolução dos determinantes. Em essência, aplicamos o mesmo método para entender o crescimento epidêmico da obesidade no Brasil (e, depois, no mundo), trocando a evolução da renda e do acesso a serviços públicos pela evolução da dieta.
O terceiro elemento que ajuda a entender a origem brasileira do conceito de alimento ultraprocessado e da hipótese de seu vínculo com a pandemia de obesidade é um traço dominante dos grupos de pesquisadores brasileiros que atuam na área da saúde pública: sua filiação a instituições públicas e o apoio exclusivo que recebem de fontes também públicas de financiamento à pesquisa. Essas condições, raras em universidades americanas e inglesas, permitiram que o Nupens/USP produzisse conhecimento sem conflito de interesse. É essas são condições indispensáveis para se fazer ciência com independência em áreas nas quais o avanço científico pode ir na direção contrária aos interesses econômicos do setor privado.
Em termos botânicos, poderíamos comparar esses três elementos ao embrião, endosperma e tegumento da semente que gerou o conceito de alimento ultraprocessado e ajudou a entender a pandemia de obesidade. E o livro de van Tulleken mostra como essa semente, de boa cepa e regada por muitos, resistiu às pragas e floresceu. Hoje, por exemplo, acumulam-se evidências de que o aumento no consumo de alimentos ultraprocessados poderia explicar a evolução epidêmica de outras enfermidades, incluindo doenças mentais, doenças inflamatórias intestinais e certos tipos de câncer. Observa-se também que, diante dessas evidências, um número crescente de países vem implantando políticas públicas para prevenir ou reverter o predomínio de alimentos ultraprocessados na dieta.
Nas páginas de Ultra-processed People, van Tulleken descreve com primor a história dos alimentos ultraprocessados, a lógica de sua produção e os impactos que esses produtos têm em nossa saúde. Para isso, expôs, muito corajosamente, seu próprio organismo aos ultraprocessados, fez uma exaustiva revisão da literatura e conversou com grandes especialistas no tema. O resultado é uma narrativa completa e fascinante.
O livro revela não apenas os efeitos nocivos dos alimentos ultraprocessados, mas a urgência de que políticas públicas impeçam que a dieta ultraprocessada substitua padrões saudáveis e tradicionais de alimentação baseados em alimentos integrais e em refeições preparadas com base nesses alimentos – comida de verdade, como costumamos dizer no Brasil.
A luta da saúde pública contra os interesses financeiros da indústria de alimentos ultraprocessados é e será árdua, mas obras como esta, já lida por centenas de milhares de leitores em vários países, são poderosas e imprescindíveis”.
Carlos Monteiro, prefácio da obra “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” do médico e comunicador Chris van Tulleken.