Evidências científicas são ferramentas poderosas, podendo causar impactos positivos em diversas áreas do conhecimento. Um exemplo relativamente recente deste efeito da ciência é a relação da sociedade com o cigarro. Se, há algumas décadas, o ato de fumar era extremamente banal e aceitável em qualquer lugar, a realidade mudou: políticas públicas tiveram sucesso em restringir o consumo, sempre com base nos inegáveis efeitos deletérios do tabaco à saúde humana.
O caminho para este resultado, no entanto, não foi livre de obstáculos. Interessada em lucros, a indústria do tabaco tentou agir de diversas formas para garantir suas vendas, mirando também em influenciar evidências científicas para transmitir a ideia de que o cigarro não era tão danoso quanto os pesquisadores demonstravam.
O movimento se repete — desta vez, a indústria de alimentos é quem tenta interferir na produção científica para garantir vantagens. É este o resultado do estudo “Beyond nutrition and physical activity: food industry shaping of the very principles of scientific integrity”, liderado pela pesquisadora Mélissa Mialon, do Nupens, e publicado na revista científica Globalization and Health, da Springer Nature.
O estudo
Propondo uma análise qualitativa de uma série de documentos, os pesquisadores fizeram uma intensa busca, considerando artigos científicos, informações públicas disponíveis e documentos internos de atores da indústria de alimentos.
A ideia era entender como o universo corporativo influencia os princípios da integridade científica. No processo, a equipe usou a definição do termo “integridade científica” como descrita pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos:
Integridade caracteriza pesquisadores individualmente e instituições onde trabalham. Para indivíduos, é um aspecto de caráter moral e experiência. Para instituições, é uma questão de criar um ambiente que promova a conduta responsável por meio da definição de padrões de excelência, confiança e legalidade que dão base às práticas institucionais. Para os cientistas, a integridade aborda, sobretudo, um comprometimento com a honestidade intelectual e responsabilidade pessoal por suas próprias ações e por uma série de práticas que caracterizam a conduta de pesquisa responsável.
Os cientistas partiram do estudo de caso do Instituto Nacional de Ciências da Vida (ILSI, na sigla em inglês), organização atuante nas interfaces entre ciência e indústria. Criado em 1978 por iniciativa de atores da indústria de alimentos, o ILSI tem o objetivo de influenciar agendas científicas e espaços políticos, tendo, inclusive, uma revista científica na área da nutrição.
Resultados
Por meio da análise dos documentos, os cientistas concluíram que o trabalho do instituto na integridade científica, nos conflitos de interesse e nas parcerias público-privadas enfraquece a produção científica independente. Além disso, privilegia os lucros em detrimento da ciência e prejudica os esforços para lidar com a influência indevida da indústria nas políticas públicas, pesquisas e práticas de saúde.
Os pesquisadores identificaram algumas estratégias do ILSI para impactar a ciência. Segundo eles, o instituto deu um primeiro passo ao construir uma literatura sobre conflitos de interesse no campo da ciência de alimentos e da nutrição. Como a produção científica nesta área era escassa, suas publicações acabaram sendo citadas em uma série de estudos posteriores, embasando pesquisas sobre integridade científica e parcerias público-privadas.
Mais recentemente, a organização passou a influenciar os princípios de integridade científica de forma mais direta, em uma tentativa de impactar agências governamentais e associações profissionais, entre outros atores.
Não foi identificada uma preocupação do instituto com os riscos do financiamento científico por empresas, tampouco diretrizes para a proteção contra tais riscos.
Para os pesquisadores, as atividades do ILSI integram um conjunto maior de práticas políticas da indústria para influenciar políticas públicas, pesquisas e práticas de saúde, o que tem impacto na concretização de interesses públicos.