Texto originalmente publicado no site Veja Saúde

Carlos Monteiro e Patrícia Jaime*
Apesar de ter se tornado tema recorrente na mídia, com diversas polêmicas e modas passageiras, a alimentação saudável é algo simples. Tornar acessível o conhecimento sobre o assunto é um dos objetivos do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, e produzido com o apoio técnico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Destinado a absolutamente qualquer pessoa, o documento traz uma mensagem que pode ser resumida pela máxima “desembale menos e descasque (e cozinhe!) mais”.

A ideia de descascar e cozinhar mais remete ao consumo de alimentos in natura, como frutas e legumes, e minimamente processados, a exemplo de feijão e o arroz. Escolher esses itens significa ingerir de forma equilibrada nutrientes e outros compostos bioativos necessários para a manutenção de nossa saúde.

Significa também estimular os agricultores e trabalhadores responsáveis pela produção, distribuição e comercialização desses alimentos. Fora isso, é uma forma de contribuir para a biodiversidade e para a proteção dos recursos naturais e do meio ambiente e, não menos importante, para afirmar uma parte importante da nossa cultura.

Já o ato de desembalar está, em geral, relacionado a produtos alimentícios preparados pela indústria e, infelizmente, cada vez mais ultraprocessados. Estas versões aumentam o risco da ingestão de quantidades excessivas de açúcar e gorduras não saudáveis, além de teores insuficientes de proteína, fibra, vitaminas e minerais. Implicam ainda no consumo de uma grande porção de aditivos e outras substâncias que, embora de uso legal, têm efeito incerto sobre nossa saúde – na melhor das hipóteses.

Há mais uma série de outros impactos: o desestímulo à agricultura familiar e à biodiversidade, a ameaça aos recursos naturais, o aumento da produção de resíduos sólidos e a extinção de culturas alimentares genuínas.

É importante lembrar, no entanto, que nem todo alimento produzido pela indústria é necessariamente ultraprocessado. Itens industrializados podem ser minimamente processados (como o arroz e o feijão), ingredientes culinários processados (óleos, azeites e a manteiga são exemplos) e processados (aqui entram pães e queijos).

Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, alimentos minimamente processados junto aos alimentos in natura são a base da alimentação saudável. Já os ingredientes culinários processados, em pequenas quantidades, se fazem necessários para transformar alimentos in natura ou minimamente processados em receitas deliciosas. Os alimentos processados, também em doses comedidas, complementam e tornam ainda mais prazerosas as refeições, sem comprometer sua qualidade nutricional.

O Guia Alimentar recomenda evitar apenas os ultraprocessados. Afinal, eles não são propriamente alimentos, mas formulações de vários ingredientes, a maioria de uso exclusivamente industrial, contendo pouco ou nenhum alimento inteiro.

Há uma forma prática de reconhecer um ultraprocessado: consultando a lista de ingredientes, que, por lei, deve constar de todos os produtos embalados que possuem mais de um ingrediente. Como diz o trecho do Guia: “Um número elevado de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias (gordura vegetal hidrogenada, óleos interesterificados, xarope de frutose, isolados proteicos, agentes de massa, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos) indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados”

Em apenas um aspecto os alimentos ultraprocessados são comprovadamente benéficos: na saúde financeira da indústria, que tem lucros astronômicos com a comercialização desses produtos. Por isso, o Guia Alimentar se tornou o centro de um debate nacional nas últimas semanas. Em meados de setembro, o Nupens/USP foi surpreendido pela divulgação de uma Nota Técnica que circulava no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O documento solicitava ao Ministério da Saúde uma revisão urgente do Guia, incluindo, em particular, a remoção da recomendação de evitar o consumo de ultraprocessados, com base em argumentos frágeis e sem qualquer embasamento científico.

Na sequência do vazamento do ofício, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), que reúne os maiores produtores de ultraprocessados, emitiu um comunicado favorável à revisão, valendo-se das mesmas alegações duvidosas utilizadas pelo Mapa. Note-se que, três meses antes, representantes da Abia participaram de uma conferência com a ministra Tereza Cristina para tratar sobre a pauta das mudanças no Guia, como consta na agenda oficial da líder da pasta.

O recuo do Mapa, com o cancelamento da Nota Técnica, ocorreu após manifestações de uma série de instituições, como o Conselho Nacional de Saúde. A comunidade científica internacional também emitiu dois posicionamentos contundentes. Em um primeiro comunicado, cientistas das universidades de Harvard e Oxford denunciaram a “má interpretação grosseira” que a Abia fez de um estudo no intuito de desqualificar o Guia.

Depois disso, outros 33 pesquisadores de instituições reconhecidas no mundo inteiro assinaram uma carta, enviada aos ministros da Agricultura e da Saúde, em defesa do Guia e de suas recomendações para assegurar uma alimentação adequada e saudável.

É patética a tentativa da Abia de negar as evidências científicas que comprovam os males causados pelos ultraprocessados à saúde. Ainda em agosto, nada menos do que quatro revisões sistemáticas sobre o tema foram publicadas em revistas científicas de grande prestígio.

Revisões sistemáticas, cabe frisar, consistem na avaliação minuciosa de todos os estudos sobre um tema já publicados em periódicos científicos do mundo todo, envolvendo a qualidade dos trabalhos e seus resultados. Em suma, servem para entender qual o norte da ciência em uma área específica de pesquisa. Neste sentido, as revisões foram unânimes: o consumo de alimentos ultraprocessados aumenta substancialmente o risco de obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, depressão e várias outras doenças crônicas, além de encurtar a expectativa de vida das pessoas.

Os mecanismos que explicariam por que os ultraprocessados são fonte de tantas doenças incluem o perfil nutricional desequilibrado desses produtos, características físicas e sensoriais que aumentam o número de calorias ingeridas por minuto, substâncias geradas por condições de alta temperatura e pressão ou liberadas por embalagens plásticas e a presença de emulsificantes e outros aditivos que afetam negativamente o microbioma, entre vários outros fatores.

Assim, segue incontestável a regra de ouro presente no Guia Alimentar para a População Brasileira lançado em 2014: prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados. Simples, como a alimentação saudável deve ser.

*Carlos Monteiro é coordenador do Nupens/USP e Patrícia Jaime é vice-coordenadora. Ambos são professores titulares do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP.