Por Thays Nascimento*

O ato de preparar os alimentos e o hábito da comensalidade são algumas das características que singularizam os seres humanos. A comida envolve outros elementos para além de nutrir o corpo: através do que comemos, manifestamos nossa cultura, costumes e simbologias que circundam quem somos. Portanto, para além dos aspectos biológicos, o contexto alimentar envolve características socioeconômicas.

A alimentação adequada e saudável, além de ser um direito assegurado aos brasileiros pela Constituição Federal e outros marcos legais, é fundamental para a promoção da saúde e prevenção de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT). Trata-se de um direito humano básico que envolve a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais do indivíduo.

Deve estar em acordo com as necessidades alimentares especiais; ser
referenciada pela cultura alimentar e pelas dimensões de gênero, raça e etnia; ser acessível do ponto de vista físico e financeiro; ser harmônica em quantidade e qualidade, atendendo aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer; e deve, ainda, ser baseada em práticas produtivas adequadas e sustentáveis.

A não garantia desse direito caracteriza uma situação de Insegurança
Alimentar.

Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 mostram que 36,7% da população brasileira apresenta Insegurança Alimentar (IA) em algum grau. Entretanto, a distribuição desse indicador não é homogênea. Dentre os indivíduos que apresentaram algum grau de IA, mais de 67% são negros (14,7% pretos e 52,9% pardos). Os dados são ainda mais preocupantes entre aqueles com Insegurança Alimentar grave: 15,8% pretos e 58,1% pardos.

O cenário do consumo de frutas, verduras e legumes, recomendados pela Organização Mundial da Saúde e pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, para a promoção de uma alimentação saudável e prevenção de DCNT, também revela as desigualdades raciais no Brasil. Estudos recentes, a partir de dados representativos da população, apontaram que o consumo desses alimentos foi menor entre a população autodeclarada preta e parda quando comparada à branca.

O consumo de alimentos considerados marcadores de uma alimentação adequada e saudável também é relacionado a indicadores socioeconômicos — estes menores na população negra brasileira. Dentre esses indicadores, é possível citar distribuição de renda, condições de moradia, trabalho e nível educacional (que é cerca de duas vezes menor entre a população negra quando comparada à branca).

As desigualdades raciais observadas em diversos indicadores — sociais, de saúde e econômicos — são reflexos de um racismo estrutural (e perverso) na formação social brasileira. É necessário olhar para as desigualdades raciais como um problema estruturante, fruto de uma abolição simbólica de escravizados, que marginalizou e submeteu a população negra a piores condições de vida. É fundamental reconhecer as questões que alimentam o racismo na nossa sociedade, e que ainda impedem/dificultam a população negra de ter hábitos de vida protetores de saúde de forma regular.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2014, 2 ed.

CANUTO, Raquel; FANTON, Marcos; LIRA, Pedro Israel Cabral de. Iniquidades sociais no consumo alimentar no Brasil: uma revisão crítica dos inquéritos nacionais. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 24, n. 9, p. 3193-3212, 2019.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. 2020.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica. n.41. 2019.

*Thays Nascimento é mestranda em epidemiologia nutricional da Faculdade de Saúde Pública da USP, e integrante do Nupens. Graduada em Gastronomia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem foco em estudos sobre consumo alimentar.