A Congregação da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), centenária casa de Paula Souza, com seus 103 anos de história, divulga Nota Técnica, clamando pela mobilização de toda a sociedade brasileira em prol de uma coordenação nacional e efetiva da resposta brasileira à pandemia, e em favor da responsabilização das autoridades que vem descumprindo o seu dever constitucional de proteger a saúde pública, tendo como resultado uma catástrofe humana de proporções inéditas na história do Brasil.
Veja abaixo a Nota Técnica na íntegra:
NOTA TÉCNICA DA CONGREGAÇÃO DA FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
A EXPECTATIVA DE IMUNIDADE COLETIVA POR CONTÁGIO CAUSA A MORTE DE CENTENAS DE MILHARES DE BRASILEIROS E AMEAÇA O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)
Síntese
A imunidade coletiva (também dita de rebanho) implica em uma barreira de pessoas imunizadas que impediria a cadeia de transmissão do vírus[1]. Em consequência, uma pessoa recém-infectada geraria, em média, menos de um caso secundário, o que em Epidemiologia se descreveria como um número efetivo de reprodução (conhecido como “R”) menor do que um 1 [2]. Desta forma, uma grande proporção de pessoas deveria estar imune e, no caso específico da SARS-CoV-2, algumas estimativas sugerem que essa proporção deveria ser de pelo menos 67%.
No Brasil e em outros países, houve expectativa de que a imunidade de rebanho pudesse ser alcançada de forma natural por meio do contágio. Em setembro do ano passado, alguns modelos matemáticos sugeriram que em Manaus (AM) a imunidade de rebanho poderia estar próxima pois aproximadamente 66% da população poderia já ter sido infectada[3]. Ainda que isto tivesse ocorrido, a imunidade coletiva teria sido alcançado ao custo de elevadas incidência e mortalidade evidenciadas desde fases precoces da epidemia. No entanto, a expectativa da imunidade coletiva por contágio não procede, por várias razões, incluindo o fato de que ser infectado não implica necessariamente desenvolver uma imunidade efetiva. Além disso, vários estudos têm sugerido que a imunidade adquirida naturalmente poderia se perder ou ser insuficiente, e reinfecções podem ocorrer [4] [5]. Por exemplo, estratégia com semelhanças que foi implementada na Suécia levou o país a 1.318 mortes/milhão de habitantes, taxa muito maior que seus vizinhos nórdicos (414/milhão na Dinamarca, 147/milhão na Finlândia e 120/milhão na Noruega).
Assim, é ilusório esperar que a progressão da epidemia leve a seu próprio controle. Ao contrário, as condições de intensa e contínua transmissão favorecem a aparição de novas variantes do vírus.
Por tudo isto, a Organização Mundial da Saúde tem reiterado que a imunidade coletiva por contágio não é uma opção a ser considerada nas respostas nacionais, tanto por razões científicas, como por razões éticas, eis que se trata de uma estratégia que implica no sofrimento, em sequelas e mortes que poderiam ser evitadas caso um governo cumprisse seu dever de conter a propagação do vírus, prevista no Regulamento Sanitário Internacional. Outros aspectos jurídicos precisam ser igualmente considerados, como a possível prática de crimes comuns, inclusive contra a saúde pública; crimes de responsabilidade previstos na Constituição Federal; e crimes internacionais, inclusive genocídio (também previsto pela legislação brasileira) e crimes contra a humanidade.
Uma vacinação efetiva e abrangente é a melhor e mais segura forma de alcançar o cenário da imunidade coletiva. As medidas de prevenção devem ser mantidas até que se alcance uma cobertura vacinal extensa.
Estudo publicado em janeiro de 2021[6], ao coletar e sistematizar atos normativos da União, jurisprudência do Tribunal de Contas da União e do Supremo Tribunal Federal e discurso de autoridades federais, constata a existência de uma estratégia de propaganda contra saúde pública durante a pandemia.
A propaganda contra a saúde pública pode ser definida como o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da Covid-19.
Os danos causados por esta estratégia são graves durante a crise, contribuindo para aumentar o número de casos e óbitos, mas também são gravíssimos a médio e longo prazo porque hipotecam as políticas públicas de saúde em seu conjunto. Exemplo disto é a disseminação de informações falsas sobre vacinas, que põe em risco a cultura de imunização arduamente conquistada no Brasil ao longo das últimas décadas. A desconfiança semeada em torno de vacinas contra a Covid-19 tende a produzir impacto negativo sobre a adesão da população a todas as vacinas.
Outra questão candente é o aumento de casos de efeitos adversos, inclusive com óbitos, decorrentes do uso de medicamentos de comprovada ineficácia para a Covid-19. Pessoas são incitadas a exigir de profissionais e serviços de saúde a prescrição e o uso de tratamentos ineficazes e potencialmente danosos. É urgente que o movimento político de difusão do chamado “tratamento precoce” para a Covid-19 seja investigado e os responsáveis por ele sejam processados e julgados.
Por outro lado, as campanhas contra a suspensão das atividades não essenciais, que raramente no Brasil alcançou o grau de restrição que poderia ser chamado de lockdown, não apenas dificultam o trabalho dos gestores e profissionais da saúde, como prolongam a crise sanitária e econômica. Estudos têm demonstrado que o custo econômico da pandemia seria muito maior na ausência de intervenções não-farmacológicas, como o lockdown, e que não existe trade-off entre saúde e economia[7]. A baixa adesão às medidas que restringem a circulação de pessoas faz com que elas sejam necessárias por mais tempo ao comprometer sua eficácia na contenção do vírus. Medidas quarentenárias deveriam ser utilizadas para conter a propagação da doença, e não para minimizar o colapso dos hospitais diante da explosão do número de casos. Hoje, porém, elas são imprescindíveis por ambas as razões.
Mais do que a existência, a impunidade e a banalização da propaganda contra a saúde pública anunciam um futuro dramático para a saúde da população brasileira, favorecendo a expansão do charlatanismo e o tratamento de temas científicos como debates de opinião, abrindo espaço para a crescente determinação ideológica das políticas de saúde.
Nem durante a pandemia, a saúde é uma prioridade no Brasil. Em 2021, a alocação orçamentária para ações e serviços públicos de saúde no Ministério da Saúde corresponde a apenas R$ 123,8 bilhões. Trata-se de montante inferior à 2020 (R$ 125,2 bilhões) e equivale ao valor do piso gasto em 2017, desconsiderando o crescimento populacional e a intensificação da pandemia.
Durante o ano da pandemia de 2020, o gasto para o seu enfrentamento da pandemia foi baixo, correspondendo a apenas R$ 39,4 bilhões (valores pagos), sendo 31,5% do total do orçamento do Ministério da Saúde para 2020, assim distribuídos: 22,8% em transferências para Estados e Distrito Federal; e 58,6% em transferências para os Municípios; 14,4% para aplicação direta pelo MS e 4,0% para transferência ao exterior[8].
Na ausência de campanha nacional de prevenção da doença, a estrutura de assistência transborda. A taxa de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos no SUS indica uma situação crítica no mês de março de 2021. Até o dia 22, os Estados apresentavam taxas entre 85% e 94% na Região Sudeste, entre 90% e 106% na Região Centro Oeste, entre 96% e 97% na Região Sul, entre 83% e 97% na Região Nordeste e entre 64% e 100% na Região Norte[9]. O colapso do sistema na maior parte do país põe em risco o atendimento para pacientes complexos que necessitem de cuidados intensivos. Níveis elevados de ocupação atingem igualmente o setor privado. Segundo o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), 6.370 brasileiros aguardam um leito de UTI para tratamento de Covid-19 em 25 de março de 2021[10].
Ao longo de 2020, mais de 20 mil leitos de UTI para Covid-19 foram abertos no Brasil, com redução no início de 2021, chegando a cerca de 3 mil em fevereiro de 2021, devido à falta de financiamento federal, sendo o credenciamento de leitos retomado apenas em março de 2021, com pronta resposta de Estados e Municípios[11]. No entanto, a criação de novos leitos não consegue acompanhar a velocidade do atual incremento de casos, com escassez de insumos, incluindo anestésicos e oxigênio, e profissionais de saúde especializados, como médicos intensivistas, enfermeiros e fisioterapeutas.
Em uma situação de colapso, atendimentos não relacionados à Covid-19 também são prejudicados, ocasionando piores resultados e esgotamento dos profissionais de saúde. Desde o início da pandemia, o Observatório do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) registrou 50.869 casos e 699 óbitos nesta categoria profissional até o presente momento em território nacional[12]. Dos 561.106 médicos registrados no Conselho Federal de Medicina (CFM), 624 faleceram por Covid-19[13]. Entretanto, ainda não é possível saber o total de profissionais de saúde (inclusive os trabalhadores administrativos e de suporte) envolvidos na linha de frente da Covid-19 que vieram a óbito. Além da Covid-19, os profissionais de saúde apresentam sintomas e agravos de diversas doenças, particularmente relacionadas à saúde mental. Pesquisa com 4384 profissionais de saúde de todas as regiões do país, por exemplo, revelou que 41% estão com insônia, 44% em crise de ansiedade e 21% com sintomas de burnout[14].
O conjunto desses fatores pode agravar a mortalidade hospitalar por Covid-19 no Brasil, que já é maior do que em outros países com populações mais envelhecidas, além de ser desigual. O estudo das primeiras 250 mil internações por Covid-19 no Brasil revela a letalidade total de 38%, cifra que sobre a 59% entre os pacientes internados na UTI e alcança 80% entre aqueles que tiveram suporte ventilatório mecânico, conforme estudo que analisou dados até agosto de 2020[15].
A vacinação contra a Covid-19 é urgente e imprescindível, mas a catástrofe sanitária só poderá ser mitigada por uma resposta nacional que envolva outros elementos também urgentes, com investimentos públicos e privados consistentes em comunicação de risco eficiente e combate à propaganda contra a saúde pública, vigilância em saúde, atenção primária e outras medidas de contenção da propagação do vírus, inclusive o lockdown quando necessário.
Vários Estados e Municípios têm colocado em prática medidas importantes para ajudar a população a ficar em casa, apoiar as comunidades para identificar pessoas com sintomas, identificar casos, rastrear contactantes e promover o isolamento em locais adequados. No plano estadual, destacam-se as estratégias de cooperação entre os estados da Região Nordeste. Em muitos municípios, a rede de atenção básica à saúde tem sido organizada para apoiar as comunidades nos territórios, como ocorre em Araraquara e São Caetano do Sul (SP), Belo Horizonte (MG), Florianópolis (SC) e Teresina (PI), entre outros municípios. Experiências exitosas precisam ser apoiadas e difundidas no plano nacional.
É também urgente impulsionar a estratégia da regionalização do SUS para aprimorar a coordenação a integração de ações, com base em espaços de cooperação e negociação permanente sob controle social. As 438 regiões do SUS deveriam ser consideradas como centros estratégicos de integração e articulação das ações e operações estratégicas de combate à COVID-19.
A ausência de uma coordenação nacional enfraqueceu as políticas de vigilância epidemiológica e sanitária, impedindo, no início da transmissão comunitária, a articulação federativa entre União, Estados, DF e Munícipios, bem como a interação eficiente dos entes públicos e privados para a adoção das medidas de contenção. A omissão federal também prejudicou a implementação de medidas de distanciamento físico, necessárias nas fases de aceleração e desaceleração, por meio de políticas criteriosas de restrição e de flexibilização da circulação. Tudo isso, levou ao prolongamento de um patamar elevado de casos e óbitos, com o subsequente colapso.
O Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 que foi criado em 25/03/21[16], apresenta composição, missão, dinâmica de funcionamento e duração pífias. Ele se resume ao Presidente da República, que vem liderando a estratégia federal de propagação do vírus e, “a convite”, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados e um observador designado pelo Presidente do Conselho Nacional de Justiça, não havendo participação de governadores, prefeitos, cientistas, técnicos, ou representação de atores econômicos e sociais. A forma de criação e a composição do Comitê reiteram o descompromisso da atual gestão federal com a democracia e a participação social, que seriam tão necessários nesse momento de crise nacional.
Mesmo diante de centenas de milhares de mortes, o governo federal prossegue no virulento ataque às autoridades estaduais e municipais, e na disseminação de notícias falsas sobre o lockdown. A estratégia inclui a recente, acintosa e impune referência do Secretário Geral da Presidência aos defensores do lockdown como “tolos”, devido à suposta transmissão do vírus por animais, como passarinhos, cães, pulgas e formigas[17]. A posse do quarto Ministro da Saúde desde o início da pandemia não traz sinais de mudança da estratégia federal, que vem intencionalmente minando a confiança da população nas medidas de contenção do vírus, promovendo a desobediência civil contra governadores e prefeitos, e comprometendo gravemente a eficiência das respostas estaduais e municipais.
A Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, centenária casa de Paula Souza, com seus 103 anos de história, clama pela mobilização de toda a sociedade brasileira em prol de uma coordenação nacional e efetiva da resposta brasileira à pandemia, e em favor da responsabilização das autoridades que vem descumprindo o seu dever constitucional de proteger a saúde pública, tendo como resultado uma catástrofe humana de proporções inéditas na história do Brasil.
São Paulo, 27 de março de 2021.
[1] Fontanet, A., Cauchemez, S. COVID-19 herd immunity: where are we?. Nat Rev Immunol (2020). https://doi.org/10.1038/s41577-020-00451-5.
[2] Diaz-Quijano, Fredi Alexander, Rodriguez-Morales, Alfonso Javier, & Waldman, Eliseu Alves. (2020). Translating transmissibility measures into recommendations for coronavirus prevention. Revista de Saúde Pública, 54, 43. Epub April 09, 2020.https://dx.doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002471
[3] Buss et al., 2020. COVID-19 herd immunity in the Brazilian Amazon. Disponível em: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.09.16.20194787v1.
[4] Boyton RJ, Altmann DM. Risk of SARS-CoV-2 reinfection after natural infection. Lancet. 2021 Mar 17:S0140-6736(21)00662-0. doi: 10.1016/S0140-6736(21)00662-0. Epub ahead of print. PMID: 33743219; PMCID: PMC7969128.
[5] Elzein F, Ibrahim A, Alshahrani F, Mahrous M, Murshid E, Aldhehyan T, Almutiri G, Altowairqi M, Ahmed M, Alsaeed M, Alsufyani E, Alnawshan N. Reinfection, recurrence, or delayed presentation of COVID-19? Case series and review of the literature. J Infect Public Health. 2021 Jan 14;14(4):474-477. doi: 10.1016/j.jiph.2021.01.002.
[6] Cepedisa/USP e Conectas Direitos Humanos. Boletim Direitos na Pandemia n. 10, São Paulo, janeiro de 2021. Disponível em: cepedisa.org.br/publicacoes.
[7] Word Bank. Development Research Group, Development Economics. Policy Research Working Paper 9277. Disponível em: http://www.worldbank.org/prwp.
[8] COFIN/CNS, Boletim, 31/12/2020.
[9] Fiocruz. Observatório Covid-19. Boletim. Disponível em https://portal.fiocruz.br/noticia/boletim-indica-adocao-de-medidas-rigidas-para-bloqueio-da-covid-19. Acesso em 25/03/2021
[10] https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/03/4914200-brasil-tem-63-mil-pessoas-a-espera-de-uti-para-covid-19-diz-conass.html
[11] CONASS. Nota Técnica. Habilitação de leitos de UTI para Covid. https://www.conass.org.br/nota-a-imprensa-habilitacao-de-leitos-de-uti-para-covid-19/ Acesso em 25/03/2021.
[12] COFEN. Observatório de Enfermagem. http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/ Acesso em 27/03/2021.
[13]CFM. Memorial aos médicos que se foram durante o combate à COVID-19 https://memorial.cfm.org.br/ Acesso em 27/03/2021.
[14] Drager LF, Pachito DV, Moreno CRC, Tavares Jr AR, Conway SG, Assis M, Sguillar DA, Moreira GA, Bacelar A, Genta PR. Sleep disturbances, anxiety, and burnout during the COVID-19 pandemic: a nationwide cross-sectional study in Brazilian healthcare professionals. medRxiv 2020.09.08.20190603; doi: https://doi.org/10.1101/2020.09.08.20190603
[15] Ranzani O.T., Bastos L.S.L, Gelli J.G.M., Marchesi, J.F., Baião, F., Hamacher, S. ; Bozza, F.A. Characterisation of the first 250000 hospital admissions for COVID-19 in Brazil: a retrospective analysis of nationwide data www.thelancet.com/respiratory Published online January 15, 2021. https://doi.org/10.1016/S2213-2600(20)30560-9
[16] Presidência da República. Decreto nº 10.659, de 25/03/2021. Institui o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia da Covid-19. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.659-de-25-de-marco-de-2021-310581671 Acesso em 26/03/2021.
[17] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56536892
Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP – São Paulo, 27 de março de 2021.