Texto publicado no blog Ciência Fundamental, mantido pelo Instituto Serrapilheira no site da Folha de S. Paulo

*Carlos Monteiro

As contradições são inerentes à ciência. São elas que fazem o cientista se intrigar, quebrar a cabeça, acordar e dormir pensando numa solução para determinado problema.

Era sabido, por exemplo, que o excesso de sal, gordura e açúcar favorecia o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, obesidade, entre outras). A partir de um certo momento, ocorreu uma baixa na compra desses ingredientes, ao passo que os índices de doenças crônicas na população brasileira só cresciam. E então? Depois de muito matutar, descobriram que as compras diminuíam porque aumentava o hábito de adquirir produtos prontos para o consumo, ultraprocessados –riquíssimos em sal, gordura e açúcar.

Há, no entanto, ideias muito bem estabelecidas que esbarram em contradições no universo extraciência. A mais curiosa talvez seja o terraplanismo –sustentada por gente capaz de viajar em busca da borda da Terra. Enquanto isso, Nasa e SpaceX lançam a primeira missão tripulada à Estação Espacial Internacional.

A epidemiologia nutricional tampouco ficou imune às falsas controvérsias. Em setembro desse ano, um ofício do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pediu ao Ministério da Saúde a revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira. O documento tinha como base uma “nota técnica” redigida com o claro intuito de retirar a orientação a respeito dos produtos ultraprocessados. Para citar um argumento divertidamente absurdo, alegava-se que, à exceção do leite materno, nenhum alimento teria todos os nutrientes requeridos pelo organismo humano. Alimentos ultraprocessados ou in natura seriam, pois, igualmente desbalanceados. Ou seja, uma banana e uma salsicha seriam equivalentes –aliás, juntas, poderiam ser degustadas na borda da Terra, enquanto se admira o universo lá embaixo.

A recomendação vai contra uma série de estudos –incluindo revisões sistemáticas e meta-análises desses estudos– que vêm associando o consumo de produtos ultraprocessados a maior risco de obesidade, diabetes, hipertensão, dislipidemias, doenças cardiovasculares, entre outras. Isso não é uma controvérsia.

Mais deletério que o negacionismo talvez seja o oportunismo científico, que não refuta o conhecimento produzido, mas se apropria das evidências para distorcê-las.

A “nota técnica” e a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), grande interessada na venda de ultraprocessados, afirmaram que o guia brasileiro é considerado um dos piores do mundo. Para tanto, invocaram um estudo de Anna Herforth (Harvard) e Marco Springmann (Oxford) publicado em julho, no British Medical Journal, com um ranking de guias alimentares de 97 países –o Brasil ocupava o 86º lugar.

Assim que tomaram conhecimento da citação do trabalho no comunicado da Abia, Herforth e Springmann acusaram o documento de “interpretação grosseira” e “apropriação indevida da publicação científica”. E declararam que, longe de estabelecer um ranking, o estudo procurava avaliar em que medida as quantidades de consumo de determinados grupos de alimentos, como carnes e hortaliças, estavam de acordo com as metas definidas para a saúde do indivíduo e do planeta.

Por entender que combinações de alimentos podem propiciar uma dieta saudável, o guia brasileiro faz sobretudo indicações qualitativas, sem especificar as quantidades de consumo de cada grupo alimentar. E, por essa razão, foi considerado “alto” seu “grau de incerteza” em relação às recomendações e metas. Isso “não significa que as recomendações sejam pobres ou necessitem revisão, mas que elas não foram quantificadas para atender metas específicas”, dizem Herforth e Springmann.

O posicionamento dos autores se mostrou um bom antídoto contra o oportunismo científico. Quem sabe seja este o caminho para provar que, assim como os terraplanistas, os oportunistas estão redondamente enganados.

*Carlos Monteiro é professor titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e coordenador científico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP).