No final dos anos 2000, pesquisadores do Nupens foram pioneiros em apontar mudanças no processamento industrial de alimentos como o principal motor da pandemia de obesidade, que tem início nos Estados Unidos nos anos 1980 e que, no século 21, passa a atingir maioria dos países do mundo.

A percepção deu origem a uma categorização de alimentos baseada em como e por que os produtos alimentícios são submetidos a processamentos industriais antes de ser adquiridos ou consumidos. A classificação, denominada NOVA, assume que a extensão e o propósito do processamento a que alimentos são submetidos determinam não apenas seu conteúdo em nutrientes, mas outros atributos com potencial de influenciar o risco de obesidade e de várias outras doenças relacionadas à alimentação.

Antes da NOVA, os alimentos eram classificados por serem fontes importantes de nutrientes específicos, independentemente do seu processamento. Assim, grãos de cereais, farinhas desses grãos, massas, pães, biscoitos, “cereais matinais” e “barras de cereais” eram todos classificados como fontes de carboidratos. Carne fresca, carne salgada e embutidos eram classificados como fontes de proteína — assim como leite, queijos e bebidas ou sobremesas lácteas. Frutas, bebidas à base de frutas, legumes e conservas de legumes eram classificados como fontes de vitaminas e minerais.

Desde que foi lançada, a classificação NOVA ganhou o mundo, dando suporte a centenas de estudos que, em seu conjunto, têm confirmado que o aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, um dos quatro grupos da classificação, está relacionado à pandemia de obesidade e de outras doenças crônicas que afetam o planeta.

Saiba mais sobre a classificação a seguir.

HISTÓRIA

Até o fim dos anos 2000, pouco se falava sobre os efeitos do processamento de alimentos na saúde humana.

Para se ter uma ideia, em 2003 a Organização Mundial da Saúde lançou um relatório técnico sobre dieta, nutrição e prevenção de doenças crônicas. No documento, uma tendência do aumento da obesidade era identificada e relacionada, em todo o mundo, com a crescente urbanização e seu impacto nas dietas, que se tornaram mais ricas em gorduras e calorias (e mais pobres em fibra e micronutrientes).

 

Muitas causas foram listadas no relatório, entre elas o alto consumo de bebidas açucaradas, a ingestão de alimentos com alta densidade energética e baixo teor de vitaminas e minerais, além do marketing pesado da indústria de fast food. A ligação dessas causas com o processamento de alimentos, no entanto, não aparecia de forma clara.

O entendimento sobre a questão começou a mudar em 2009, a partir da divulgação do comentário Nutrition and Health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing (Nutrição e Saúde. O problema não é a comida, nem os nutrientes, mas o processamento, em tradução livre).

Publicado pela revista Public Health Nutrition, uma das publicações da Sociedade Britânica de Nutrição editadas pela Cambridge University Press, o comentário, redigido pelo coordenador científico do Nupens, enfatizava a insuficiência de se considerar apenas o conteúdo de nutrientes quando o interesse era entender a relação entre alimentação e saúde. Descrevia, ainda, vários atributos dos alimentos que eram modificados com o processamento e propunha classificar os produtos alimentícios de acordo com a extensão e o propósito do seu processamento. Nascia, ali, o conceito de alimento ultraprocessado e o embrião da classificação NOVA.

Em 2014, a NOVA deu fundamento científico e embasou as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira, o que fez com que a classificação tivesse impacto direto em políticas públicas de nutrição e saúde no Brasil. A influência também chegou ao exterior, já que o Guia brasileiro influenciou publicações análogas em diversos outros países, incluindo Uruguai, Canadá, Peru, Equador e, mais recentemente, Israel.

A inclusão e popularização do termo “ultraprocessado” na ciência também possibilitou o acompanhamento do consumo de produtos da categoria nas populações, com uma nova orientação para a análise dos inquéritos sobre consumo alimentar. São informações que geram importantes contribuições para a saúde pública.

OS GRUPOS
ALIMENTARES

A classificação NOVA organiza os alimentos em quatro categorias. Conheça cada uma delas a seguir.

GRUPO 1

Alimentos in natura ou minimamente processados

O alimento in natura é aquele ao qual temos acesso da maneira como ele vem da natureza. O termo inclui partes comestíveis de plantas (como sementes, frutas, folhas, raízes) ou de animais (músculos, ovos, leite). Também inclui cogumelos e algas.

Os minimamente processados são, basicamente, alimentos in natura que precisam de algum processamento antes de chegar ao consumidor final, mas que não têm adição de ingredientes ou transformações que os descaracterizem. Os grãos de feijão são apenas secos e embalados, os grãos de trigo são transformados em farinhas, cuscuz e massas, os grãos de milho em farinhas e polenta, os grãos de café são torrados e moídos, o leite é pasteurizado, a carne é resfriada ou congelada — todos esses são processos que aumentam a duração e facilitam o consumo dos alimentos sem alterar substancialmente suas principais propriedades.

GRUPO 2

Ingredientes culinários processados

Quando baseamos a alimentação em opções in natura ou minimamente processadas, é frequente a necessidade de cozinhar e temperar os alimentos. É nesta etapa que entram os alimentos do segundo grupo da classificação NOVA.

Ingredientes culinários processados são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos como prensagem, centrifugação e concentração. É o caso, por exemplo, do azeite obtido de azeitonas, da manteiga obtida do leite e do açúcar obtido da cana ou da beterraba. Eles também podem ser extraídos diretamente da natureza, como o sal marinho e o sal de rochas.

Esses ingredientes são essenciais para converter alimentos do primeiro grupo em receitas e refeições deliciosas e, quando usados em pequenas quantidades, são perfeitamente compatíveis com uma alimentação nutricionalmente equilibrada e saudável.

GRUPO 3

Alimentos processados

A categoria de alimentos processados é composta por itens do primeiro grupo (in natura e minimamente processados) modificados por processos industriais relativamente simples e que poderiam ser realizados em ambiente doméstico. Contam com a adição de uma ou mais substâncias do segundo grupo, como sal, açúcar ou gordura.

O grupo inclui, por exemplo, conserva de legumes ou de pescado, frutas em calda e queijos e pães do tipo artesanal. Alimentos processados aumentam a duração de seus ingredientes originais, além de contribuir para diversificar a alimentação. Se consumidos em pequenas quantidades e como parte de refeições baseadas em alimentos do primeiro grupo, são igualmente compatíveis com uma alimentação equilibrada nutricionalmente e saudável.

GRUPO 4

Alimentos e bebidas ultraprocessados

Alimentos ultraprocessados — que podem ser comidas e bebidas — não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos do primeiro grupo. Essas substâncias incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados protéicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.

Alimentos ultraprocessados são frequentemente adicionados de corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivos que dão às formulações propriedades sensoriais semelhantes às encontradas em alimentos do primeiro grupo. Também servem para disfarçar características indesejadas do produto final. Apesar das alegações comumente vistas nas embalagens dos ultraprocessados, alimentos in natura são uma pequena porcentagem de sua composição ou estão simplesmente ausentes, como no caso de produtos “sabor morango” ou “sabor uva”.

Os processos e ingredientes usados para fabricar alimentos ultraprocessados são desenvolvidos para criar produtos altamente lucrativos (ingredientes de baixo custo, longa durabilidade, produtos de marca) que possam substituir todos os outros grupos alimentares da NOVA. Sua conveniência (imperecíveis, prontos para consumir), hiper-palatabilidade (sabor de intensidade extrema), promoção e apropriação pelas corporações transnacionais e marketing agressivo dão aos alimentos ultraprocessados enormes vantagens de mercado sobre todos os outros grupos alimentares.

Alimentos ultraprocessados incluem refrigerantes, bebidas lácteas, néctar de frutas, misturas em pó para preparação de bebidas com sabor de frutas, ‘salgadinhos de pacote, doces e chocolates, barras de “cereal”, sorvetes, pães e outros panificados embalados, margarinas e outros substitutos de manteiga, bolachas ou biscoitos, bolos e misturas para bolos, “cereais” matinais, tortas, pratos de massa e pizzas pré-preparadas, nuggets de frango e peixe, salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída, macarrão instantâneo, misturas em pó para preparação de sopas ou sobremesas e muitos outros produtos.

EVIDÊNCIAS

A ideia de que os alimentos ultraprocessados estão relacionados ao aumento do risco de obesidade e de outras doenças crônicas relacionadas à alimentação pode parecer óbvia, mas não escapou do ceticismo no seu surgimento. No entanto, hoje há diversos estudos que demonstram o efeito nocivo destes produtos.

Um dos mais importantes estudos sobre o efeito danoso dos alimentos ultraprocessados para a saúde foi realizado no maior laboratório de pesquisas sobre saúde do mundo, o National Institutes of Health dos Estados Unidos. Ali, o cientista Kevin Hall isolou, por um mês, 20 adultos saudáveis. Valendo-se da classificação NOVA, ofereceu, por duas semanas, para metade dos participantes do estudo, refeições isentas de alimentos ultraprocessados. Para a outra metade, as refeições continham, basicamente, apenas alimentos ultraprocessados (cerca de 80% das calorias). Nas duas semanas seguintes, a alimentação dos dois grupos foi invertida.

Ambas as dietas ofereciam a mesma quantidade de calorias e macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras). Cada pessoa poderia comer o quanto quisesse. O resultado mostrou que, na vigência da dieta ultraprocessada, os participantes engordaram, em média, um quilo nas duas semanas. Na contramão, na vigência da dieta não ultraprocessada, houve emagrecimento, também de em média um quilo nas duas semanas. Os resultados completos do ensaio clínico de Kevin Hall foram publicados em 2019 na prestigiosa revista Cell Metabolism.

Na França, uma grande pesquisa do Grupo de Pesquisas em Epidemiologia Nutricional da Universidade de Paris acompanhou, por vários anos, a alimentação de mais de 100 mil adultos visando relacionar o padrão alimentar de cada pessoa ao risco de adoecer. Os resultados, publicados em revistas médicas altamente conceituadas como British Medical Journal, JAMA e PloS Med, demonstraram a clara associação do consumo de alimentos ultraprocessados com a incidência de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, depressão e câncer de mama e, ainda, com o risco de morrer precocemente por qualquer causa.

A associação do consumo de alimentos ultraprocessados com a incidência de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e depressão e com a menor expectativa de vida foi confirmada por grandes estudos de coorte realizados na Espanha, Estados Unidos, Reino Unido e, também, no Brasil.

No ano de 2020 foram publicadas seis revisões sistemáticas sobre estudos que, valendo-se da classificação NOVA, analisaram a associação entre consumo de alimentos ultraprocessados e saúde, todas elas concluindo pelo impacto negativo que aquele consumo exerce sobre um grande número de doenças de grande relevância epidemiológica em todo o mundo.