O Boletim da Organização Mundial de Saúde (OMS) de agosto traz uma entrevista com o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, coordenador emérito do Nupens/USP. Ele conversou com Gary Humphreys sobre a transição alimentar no Brasil e a necessidade de mudanças substanciais em todos os níveis de produção, marketing e consumo de alimentos para enfrentar a pandemia global da obesidade. Confira a tradução, abaixo:

Pergunta: Você estudou medicina. O que te levou a se especializar em nutrição e saúde?

Resposta: Meu objetivo original na faculdade de medicina era seguir a chamada medicina comunitária. Concluí uma residência de dois anos nessa área, trabalhando não na cidade de São Paulo, mas nas áreas rurais ao sul do estado, particularmente em uma região muito subdesenvolvida conhecida como Vale do Ribeira. Na época, por volta de 1972, não havia Atenção Primária à Saúde estabelecida lá, e eu e meus colegas residentes decidimos montar um programa de atenção primária à saúde, que nos mostrou os níveis severos de desnutrição na região. Isso também nos forneceu algumas percepções interessantes sobre como a dieta impacta a saúde. Por exemplo, notamos que pequenos agricultores que cultivavam diversas culturas, como feijão e mandioca, em regiões de plantio de chá, apresentavam quadros de desnutrição muito menos severos do que os  trabalhadores que cultivavam chá e banana, devido às suas diferentes dietas. Em resposta, iniciamos um programa de treinamento para professores locais e, ao equipá-los com educação básica em saúde e nutrição, pudemos impactar diretamente a saúde da comunidade. Essa abordagem de base se mostrou bastante bem-sucedida, e procuramos replicar o modelo em outras regiões. No entanto, durante o final dos anos 1970, a turbulência política da ditadura militar restringiu nossos movimentos, especialmente na região central do Brasil, perto da Amazônia, onde acontecia uma significativa atividade guerrilheira. Consequentemente, fiz a transição para um papel acadêmico no Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Então, pelo menos inicialmente, meu envolvimento com a nutrição estava profundamente enraizado em experiências práticas e comunitárias, em vez de estudo acadêmico.

 

P: Como esses insights se traduziram em sua pesquisa acadêmica?

R: Eles me colocaram no caminho que sigo desde então – buscando a ligação entre nutrição e saúde. Minha pesquisa se concentrou na transição nutricional no Brasil, documentando as mudanças drásticas da desnutrição para a obesidade devido a mudanças na dieta, condições econômicas e urbanização. A abordagem que adotei com colegas foi inicialmente baseada em levantamentos nutricionais e epidemiológicos, que indicaram um aumento alarmante nas taxas de obesidade. Por exemplo, a partir de 2006, observamos cerca de um milhão de novos casos de obesidade adulta por ano. Essa constatação nos levou a investigar as mudanças alimentares ao longo do tempo, com foco especial no crescente consumo de alimentos ultraprocessados.

P: O que são alimentos ultraprocessados?

R: Alimentos ultraprocessados são, essencialmente, produtos manufaturados feitos a partir de substâncias extraídas dos alimentos, como óleos, gorduras, açúcar, amido e proteínas, ou sintetizados a partir de componentes alimentares, como gorduras hidrogenadas e amido modificado. Esses alimentos geralmente estão prontos para o consumo ou requerem pouca preparação,  frequentemente contêm aditivos como corantes, aromatizantes e conservantes. Eles também costumam conter níveis mais altos de açúcar, gorduras e sódio, enquanto são pobres em nutrientes como fibras e vitaminas. Esses alimentos são frequentemente projetados para incentivar o consumo excessivo e estão associados a uma ingestão calórica maior em comparação com alimentos tradicionais, como arroz e feijão.

P: Como e por que você desenvolveu a classificação Nova e qual é sua importância para a epidemiologia nutricional?

R: A classificação Nova categoriza os alimentos com base na intensidade e no propósito de seu processamento, em vez de apenas considerar seus componentes nutricionais. O sistema divide os alimentos em quatro grupos: alimentos in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados. A classificação foi idealizada para ajudar a entender como o nível de processamento impacta a saúde. Nossos estudos mostraram que um maior consumo de alimentos ultraprocessados está associado a maiores riscos de obesidade, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.

P: Como vocês foram capazes de avaliar até que ponto as pessoas estavam consumindo esses alimentos?

R: Utilizamos dados de pesquisas de compras domiciliares, que são periodicamente realizadas para monitorar a inflação, mas também fornecem informações detalhadas sobre os hábitos de consumo de alimentos. Essas pesquisas nos ajudaram a identificar uma mudança de alimentos básicos tradicionais, como arroz e feijão, para produtos ultraprocessados, como refrigerantes, salgadinhos e macarrão instantâneo. Com o tempo, incorporamos medidas mais diretas para monitorar a ingestão alimentar, como recordatórios alimentares de 24 horas, que fornecem um quadro mais preciso do que as pessoas estão realmente consumindo. Esses métodos foram essenciais para acompanhar a transição e validar os impactos na saúde dos alimentos ultraprocessados em diferentes populações.

P: O que impulsionou a transição na dieta brasileira?

R: De modo geral, a transição acompanhou o desenvolvimento econômico, o aumento e a distribuição de renda, e a urbanização. Entre 1996 e 2006, apesar do crescimento econômico mais lento em comparação com o chamado “Milagre Brasileiro” dos anos 70, vimos avanços significativos na distribuição de renda, juntamente com expansões na educação, serviços de saúde e infraestrutura, como sistemas de água e esgoto. Importante destacar que o status nutricional da população não se devia apenas a programas de nutrição específicos, mas a políticas de desenvolvimento mais amplas que ampliaram o acesso a serviços públicos para os mais pobres. Por exemplo, nossos estudos indicaram que as melhorias na educação materna foram fundamentais, respondendo por cerca de dois terços da redução no déficit de crescimento infantil. Isso foi seguido pelo crescimento da renda, melhorando o acesso à nutrição, melhor saneamento, que entre outras coisas reduziu o impacto das doenças transmitidas pela água, e maior acesso aos cuidados de saúde. Esses fatores coletivamente mostraram a natureza multidimensional das melhorias no status nutricional, enfatizando que estratégias eficazes vão além da mera suplementação alimentar para abranger políticas socioeconômicas mais amplas. Tudo isso foi bom, claro, o lado positivo do desenvolvimento econômico, mas ao mesmo tempo, à medida que comunidades anteriormente marginalizadas foram inseridas no mercado, elas começaram a acessar diferentes tipos de alimentos. Enquanto historicamente os indivíduos nessas comunidades poderiam não ter acesso suficiente a qualquer alimento, agora enfrentavam uma abundância de alimentos ultraprocessados baratos e facilmente disponíveis. E não apenas alimentos, é claro; o acesso a refrigerantes açucarados também aumentou, apoiado por um marketing agressivo da indústria de bebidas. Os alimentos ultraprocessados, incluindo refrigerantes, são projetados para serem hiperpalatáveis e menos saciantes, levando as pessoas a consumir mais sem se sentirem saciadas. Essa mudança é um fator crucial para entender o aumento das taxas de obesidade, notadamente por volta de 2006, quando notamos um aumento alarmante nas taxas de obesidade ligado a mudanças na dieta, particularmente um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados. Outras considerações são a diminuição da atividade física associada à urbanização.

P: Quais são as implicações dessas descobertas para o desenvolvimento de políticas nutricionais?

R: Nossa pesquisa destaca a importância de considerar os tipos de alimentos disponíveis para os consumidores, não apenas a quantidade. Estratégias eficazes de saúde pública precisam promover o acesso a alimentos nutritivos, in natura e minimamente processados, enquanto restringem a prevalência e a disponibilidade de produtos ultraprocessados. Mas políticas públicas eficazes também devem abordar a natureza multissetorial da nutrição e da saúde, englobando educação, distribuição de renda e acesso a serviços de saúde. Ao entender e intervir nessas áreas interconectadas, podemos combater melhor os desafios nutricionais e melhorar os resultados gerais de saúde pública.

P: Como suas descobertas influenciaram as diretrizes alimentares e políticas de saúde pública no Brasil?

R: Nossa pesquisa influenciou significativamente o desenvolvimento do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014. O Guia enfatiza os riscos à saúde associados aos alimentos ultraprocessados e recomenda minimizar seu consumo. Essa abordagem foi adotada em várias iniciativas de saúde pública em todo o Brasil, impactando milhões de pessoas ao integrar essas diretrizes nos protocolos nacionais de saúde para o manejo de condições como diabetes e hipertensão. O Guia foi projetado para se conectar com as pessoas, apresentando-se em termos fáceis de entender e usando fotos de refeições típicas – cafés da manhã, almoços, jantares que se alinham com nossas diretrizes. Essa abordagem visual ajuda as pessoas a entender as recomendações, mesmo que não possam ler. Também recomendamos o consumo de frutas em sua forma integral em vez de suco. Para aqueles que bebem suco, sugerimos que o façam fresco em casa, reconhecendo que isso nem sempre é viável diariamente devido ao tempo, custo e esforço envolvidos. Também enfatizamos a importância de dietas tradicionais, como arroz e feijão, e promovemos o consumo de água em vez de qualquer outra bebida. Estamos interessados em promover e proteger práticas dietéticas e culinárias tradicionais, que ainda são um componente importante do cenário nutricional no Brasil, assim como em muitos países de baixa renda. Até certo ponto, estamos defendendo algo que ainda existe em vez de tentar estabelecer algo que foi destruído, como é o caso em muitos países de alta renda, onde alimentos ultraprocessados de conveniência são prevalentes, e retornar às dietas tradicionais é muito mais desafiador.

P: A obesidade adulta mundial mais que dobrou desde 1990, e a obesidade entre adolescentes quadruplicou. O que pode ser feito para reverter essa tendência?
R: O desafio continua sendo traduzir o crescente corpo de evidências em políticas públicas eficazes que possam frear o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados. Ao continuar refinando nosso entendimento e comunicação sobre essas questões, podemos orientar melhor as intervenções de saúde pública e promover padrões alimentares mais saudáveis em todo o mundo. Claramente, precisamos comunicar melhor, mas existem outras alavancas que podemos acionar. No Brasil, as autoridades estão atualmente discutindo uma Reforma Tributária que aplicaria taxa zero para alimentos não processados e minimamente processados, enquanto impostos mais altos podem ser aplicados a alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas. Isso é diretamente influenciado por nosso Guia Alimentar. Mas além das diretrizes alimentares, precisamos de reformas abrangentes no sistema alimentar. Isso inclui a promoção de alimentos ‘reais’, não processados, e a redução da disponibilidade e do apelo das opções ultraprocessadas. No atual cenário, muita responsabilidade é colocada sobre o consumidor, o indivíduo, mas na verdade o ambiente precisa mudar. Isso é análogo a enfatizar a reciclagem de plástico em vez de reduzir seu uso em embalagens e aplicações descartáveis. Em conjunto com a nutrição, a mudança a longo prazo exigirá mudanças substanciais em todos os níveis de produção, marketing e consumo de alimentos.

P: Medicamentos supressores de apetite, como a semaglutida, podem fazer a diferença?
R: Eu não acredito. Embora eles possam oferecer alívio imediato – embora transitório – do consumo excessivo, eles não abordam a causa raiz: o próprio complexo industrial alimentar, o sistema alimentar. Além disso, ainda é necessário ver que tipo de efeitos colaterais e eventos adversos vão ocorrer. Não, a verdade é que precisamos de uma mudança de paradigma em como vemos e consumimos alimentos, focando mais em nutrição que sustente a vida em vez de soluções de curto prazo.