ENTREVISTA | Carlos Monteiro

*Este artigo foi primeiramente publicado na revista Sciences & Avenir (França) em língua francesa, em 30 de janeiro de 2023. Acesse a versão original.

por Isabelle do O’Gomes

Carlos Augusto Monteiro é um epidemiologista brasileiro. Seus trabalhos em nutrição estão entre os mais citados do mundo. Junto à sua equipe, ele foi pioneiro na abordagem do efeito deletério dos alimentos ultraprocessados na saúde humana. Nesta entrevista, ele explica à Sciences et Avenir como o seu trabalho abriu um novo campo de investigação.

 

Em 2009, você atirou uma pedra na lagoa. Na revista Public Health Nutrition, você apresentou a ideia de que as políticas de saúde pública deveriam ser revistas: deixar de se concentrar apenas na qualidade nutricional dos alimentos (ricos em fibras, vitaminas, gordura, açúcar, sal, calorias) e se interessar pela forma como foram processados. Como o senhor e sua equipe chegaram a esse conceito?

O conceito surgiu em vários grupos de reflexão muito diferentes, em laboratórios como o nosso e os de pesquisadores mexicanos, mas também entre filósofos e ensaístas como Gyorgy Scrinis e Michael Pollan. A contribuição do nosso laboratório para o conceito foi apoiar a teoria por meio da reflexão sobre as mudanças nos nossos sistemas alimentares e formalizá-la num quadro científico. De um ponto de vista científico, tínhamos de ser capazes de caracterizar estes produtos.


O que é que um hambúrguer, nuggets de frango, suco de fruta concentrado, uma barra de cereais e uma lata de refrigerante têm em comum?

Graças à classificação Nova, definimos o que todos estes produtos têm em comum: aditivos que chamamos cosméticos e substâncias industriais extraídas de alimentos que nunca são encontrados numa cozinha doméstica, como isolados de proteínas ou amido modificado. Estas substâncias são obtidas por técnicas extremas de processamento alimentar (rachadura, extrusão, hidrogenação).

Daí nasceu a nossa classificação em quatro categorias alimentares: alimentos in natura como frutas, vegetais, leite, etc. (grupo 1), ingredientes culinários como óleo e vinagre (grupo 2), alimentos processados a partir das duas primeiras categorias alimentares como queijo, pão, pratos caseiros (grupo 3) e o quarto nível da classificação, os alimentos ultraprocessados.

Por trás desta ideia de classificação, quisemos testar hipóteses científicas. Por exemplo, qual a contribuição desses alimentos para as epidemias de doenças crônicas (diabetes, obesidade, etc.) que se propagam nos países anglo-saxônicos e que começam a alastrar seriamente no Brasil e mais amplamente na América Latina?

BIOGRAFIA
Após a formação como médico, Carlos Augusto Monteiro se dedicou à investigação em saúde pública. Atualmente, é professor no departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e epidemiologista no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da mesma universidade. O Núcleo tem foco na evolução das práticas alimentares e em seus impactos na saúde, e reflete sobre programas de prevenção. Em 2019, Monteiro escreveu uma síntese sobre alimentos ultraprocessados para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).

 

Quando se define um alimento ultraprocessado, não se descreve apenas a sua composição. Os ultraprocessados são o resultado de uma transformação mais ampla dos nossos sistemas alimentares. Como você enxerga isso?

Esses alimentos alteraram profundamente as dietas dos americanos, ingleses e australianos. Nesses países, foi estabelecida uma transição alimentar em que os ultraprocessados passaram a fornecer mais de 60% das calorias de uma refeição. Em termos concretos, isso significa que, numa família americana, comemos cada vez menos à mesa em torno de uma única refeição fresca e feita em casa: cada se serve de alimentos congelados e pratos prontos, e o microondas substitui o forno e o fogão.

Essa mudança nos hábitos alimentares teve outros efeitos: tornou os produtos com baixo valor nutricional atrativos por meio do marketing e publicidade, inibiu nossos reflexos de saciedade e regulação alimentar adquiridos ao longo de milhares de anos e está obviamente envolvida no desenvolvimento de epidemias de doenças crônicas, como diabetes ou obesidade.

Analisemos, agora, essa transição ao nível das indústrias da alimentação. Preparar uma feijoada ou um quindim exige a compra de produtos de qualidade: feijão vermelho, carne, ovos e açúcar. Mas a indústria precisa ter lucro: se tiverem de fazer esses pratos industrialmente, e se conseguirem encontrar substâncias extraídas dos alimentos que sejam mais baratas do que os alimentos crus no mercado, assim o farão.

Assim, substituem a carne por opções de baixa qualidade, o açúcar de cana por frutose de milho. Essas substituições alimentares podem ser extremas a ponto de se poder encontrar alimentos em supermercados que não contêm alimentos crus, sendo preparados apenas com substâncias industriais. Uma vez que todas estas substâncias são reunidas e não têm o sabor, textura nem a cor de um prato tradicional, são colocados aditivos cosméticos (aromatizantes, corantes, emulsionantes). Além disso, essas mesmas empresas inventam novos produtos, como refrigerantes ou cereais matinais, que são puramente industriais e com custos de matérias-primas muito baixos, o que lhes permite atingir margens de lucro muito elevadas.


Atualmente, os alimentos ultraprocessados se tornaram um tópico de investigação importante: em 2022, foram listadas nada menos que 332 publicações sobre este assunto, em comparação com apenas 40 por ano no início dos anos 2000 (na base de dados Pubmed). Entre os artigos que viu, quais achou mais relevantes?

A primeira série (2011-2018) de trabalhos realizados em particular pela nossa equipe da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) mostrou que, em comparação a alimentos não processados, os ultraprocessados têm uma maior densidade energética, um maior teor de açúcar adicionado, gorduras saturadas, sal, e um menor teor de proteínas e fibras. E, assim, há uma relação direta entre a dieta desequilibrada de uma pessoa e o seu consumo de alimentos ultraprocessados.

Depois, a partir de 2015, chegaram todos os estudos baseados no acompanhamento de grandes coortes de participantes durante vários anos (SUN na Espanha, Harvard e Framingham nos Estados Unidos, ELSA no Brasil, NutriNet-Santé na França, Biobank no Reino Unido, MoliSani na Itália, Lifelines nos Países Baixos). São projetos que mostraram que o consumo diário de alimentos ultraprocessados está associado ao risco de desenvolvimento de doenças crônicas (diabetes, obesidade), à má saúde cardíaca e até mesmo ao desenvolvimento de câncer. Outra lição aprendida com esses estudos foi que, independentemente das tradições culinárias de um país, a substituição das refeições tradicionais por refeições ultraprocessadas alterou a saúde.

Por fim, um estudo de 2019, que para os epidemiologistas é uma espécie de “padrão ouro”, é o ensaio randomizado controlado do Instituto Nacional de Saúde (NIH) nos EUA. Durante quinze dias, dois grupos de pessoas foram isolados num hospital: um grupo comeu uma dieta em que mais de 80% das calorias provinham de alimentos ultraprocessados e o outro grupo comeu refeições sem ultraprocessados.

Após duas semanas, os cientistas descobriram que os participantes do primeiro grupo tinham ganho quase um quilo de peso corporal ao ingerir cerca de 3 mil calorias por dia. Já o segundo grupo, que teve acesso à dieta sem ultraprocessados, teve consumo médio de 2.500 calorias e perderam um quilo. Por razões éticas óbvias, o estudo durou apenas duas semanas, mas os resultados ao longo de 15 dias já são significativos.


Após mais de 10 anos de pesquisa, ainda existem grandes temas a serem investigados nesta área?

Sim, há dois grandes temas a desenvolver. Em primeiro lugar, precisamos compreender melhor os mecanismos fisiológicos por trás de todos esses estudos observacionais. Por exemplo, sabemos agora que os emulsionantes, que são muito comuns na composição de alimentos ultraprocessados, aumentam a permeabilidade da parede intestinal e causam um estado de inflamação crônica no corpo. Mas existem outros mecanismos. Esses estudos não são fáceis de realizar porque os ultraprocessados são compostos por uma grande variedade de substâncias que são muito diferentes umas das outras. Essa primeira área é importante para melhorar o conhecimento científico, mas não devemos nos iludir: a comunidade científica não será capaz de identificar todos os mecanismos envolvidos nestas perturbações alimentares num futuro próximo. É um processo muito longo.

É por isso que, na minha opinião, o mais importante é pesquisar a eficácia das políticas públicas de prevenção: por exemplo, testar uma política de prevenção em uma cidade ou bairro, medir os indicadores de melhoria da saúde a curto prazo (medição do IMC, níveis de colesterol no sangue, tensão arterial, etc.) e comparar os resultados com os de cidades ou bairros onde essas políticas de prevenção não são estudadas.


Os problemas de saúde causados por estes produtos levaram muitos países da América Latina a introduzir políticas de prevenção. Como epidemiologista, quais são, a seu ver, as experiências mais eficazes?

É importante citar a experiência chilena, que foi uma verdadeira mudança de paradigma. O lema da indústria alimentar que diz que “Não há alimentos que sejam bons ou ruins para a sua saúde, basta comer tudo em quantidades razoáveis” caiu em 2016. O governo chileno decidiu que há alimentos que são danosos à saúde e que devemos evitar comê-los. E promulgou leis, incluindo um selo de advertência nutricional imponente para produtos demasiado ricos em açúcar, sal, calorias e/ou gorduras saturadas. Ao contrário do Nutri-Score, da França, não há equilíbrio entre o bom e o mau. Um produto demasiado doce é um produto demasiado doce, mesmo que seja rico em proteínas.

A segunda experiência é do México e tem apenas dois anos de implementação. Por lá, a ideia do selo chileno é aceita, mas são acrescentados três outros marcadores: cafeína, edulcorantes e gordura trans. Os edulcorantes são um critério interessante que resultou da experiência chilena. No Chile, para evitar a rotulagem negativa, os fabricantes substituíram o açúcar por edulcorantes. Não se pode imaginar quantos produtos contendo edulcorantes existem por lá. Para além desses selos nutricionais, o governo mexicano desenvolveu a educação nutricional e decidiu, também, tributar as bebidas açucaradas. Algumas regiões proibiram, inclusive, a venda de bolos, batatas fritas e bebidas açucaradas aos jovens. A política mexicana é susceptível de se tornar o modelo a se seguir.


É correto dizer que a América Latina se tornou mais consciente desses problemas do que os seus vizinhos do norte?

Sim, e no entanto foi na América do Norte que os ultraprocessados se espalharam após a Segunda Guerra Mundial. Nos países anglo-saxônicos, as mesmas regras e receitas aplicadas aos produtos alimentares valeram para a produção de sapatos ou carros. Desde que os produtos alimentares fossem higienicamente seguros, os fabricantes podiam utilizar uma matéria-prima barata, resultado de um processamento industrial cada vez mais sofisticado. Nenhuma regulamentação foi capaz de parar este fenômeno.

É preciso dizer que nos EUA os lobbies agrícolas são muito poderosos. Como vizinhos próximos, fomos inundados por ultraprocessados. No entanto, ao contrário dos EUA, esta mudança foi mais abrupta e, em países como o México, vimos a taxa de obesidade disparar rapidamente. Ao mesmo tempo, temos, na América Latina, uma tradição de políticas públicas a favor da saúde dos nossos cidadãos, seja na Argentina, México ou Brasil. Isso pode explicar porque começamos a ter regulamentos ainda ausentes na América do Norte.
É importante, ainda, salientar que temos sido capazes de realizar, no contexto universitário, o trabalho que conduziu a essas políticas públicas. Ou seja, em total independência do poder econômico.

O desenvolvimento dessas políticas públicas nem sempre foi fácil porque os governos da América Latina se concentraram no problema da desnutrição sem ver que, mesmo nos países menos industrializados, começam a surgir outros problemas relacionados à alimentação.
Sim, é verdade. Coordenei um estudo que mostrava que a obesidade, e não a fome, estava se tornando um verdadeiro problema de saúde pública no Brasil. Felizmente, o governo Lula teve inteligência para levar em conta o nosso trabalho. Compreendeu que, por um lado, tínhamos de combater a desnutrição e, por outro lado, lidar com a junk food. Infelizmente, em um mesmo país é possível encontrar ambos os flagelos coexistindo: no Nordeste do Brasil, as pessoas ainda não têm o suficiente para comer; nas grandes cidades, as pessoas comem calorias em excesso e de má qualidade.


Tendo uma longa carreira como epidemiologista, que começou nos anos 80, o que você vê como mais preocupante em relação à evolução das práticas alimentares?

Tenho várias preocupações. Gostaria de ver o fim dos discursos absurdos de culpa que dizem “A culpa é dele por ser diabético ou obeso, é porque é preguiçoso, não tem a vontade de comer uma dieta equilibrada”. Tudo isso é completamente falso. Não houve alterações genéticas na espécie humana que nos tenham tornado incapazes de comer adequadamente. Foi o nosso ambiente que se tornou obesogênico, foi o nosso sistema alimentar que mudou — mais precisamente, o abastecimento alimentar mudou.

Mas há oportunidades para inverter este fenômeno. Em partes do mundo como a Europa e a América Latina, existe ainda uma oferta alimentar variada e a maioria das calorias ingeridas pelos indivíduos vem de alimentos crus ou simplesmente processados. Precisamos parar o processo de transição alimentar. Na França, consome-se cerca de 30% de ultraprocessados, muitas vezes como um lanche entre as refeições, por exemplo, ou sob a forma de bebidas ou sobremesas para acompanhar o almoço ou o jantar. Como esses alimentos não fazem parte da dieta básica, existem alavancas de ação para prevenir esta transição alimentar: prevenção, informação, regulação e valorização das tradições alimentares.

Finalmente, o que mais me preocupa é a normalização das práticas alimentares: os modelos de refeições industriais estão sendo exportados para o mundo todo. Esses modelos vêm de países como os EUA, que, sendo percebidos como modernos e inovadores, são imitados por outros. O nosso trabalho científico prova que a “pseudomodernidade inovadora” dos alimentos ultraprocessados leva a uma grande regressão nos nossos sistemas alimentares.