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Texto de pesquisadora da FSP USP marca 100 anos da ocorrência da Gripe Espanhola

Foto: Renato Antunes Ribeiro.

A historiadora Anna Cristina Rodopiano de Carvalho Ribeiro, Pós-Graduanda do Programa de Saúde Pública (FSP-USP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Marques – docente do Departamento de Políticas e Saúde da Faculdade de Saúde Pública () da USP, produziu o texto a baixo a pedido da Assessoria de Comunicação da FSP/USP, para marcar o aniversário dos 100 anos da gripo espanhola que é lembrado no dia 15 de Outubro. Segundo a historiadora “no dia 15 de outubro de 1918 as autoridades sanitárias assumem oficialmente para a população que a Epidemia alcançou o território paulista”.

Veja o texto abaixo:

Cautela e canja de galinha não fazem a mal a ninguém!
Há 100 anos São Paulo enfrentava a Epidemia de Gripe Espanhola.

Por Anna Cristina Rodopiano de Carvalho Ribeiro*

A Epidemia de Gripe pneumônica ou Influenza não possui sua origem geográfica definida, contudo, acredita-se que ficou conhecida como Gripe Espanhola por durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a Espanha ter se mantido neutra, permitindo que sua imprensa noticiasse casos da nova peste na Europa, ocasionado assim a associação dos primeiros focos da epidemia a este país.

Estudiosos estimam que a Gripe Espanhola, maior epidemia da história, tenha atingido entre 80 e 90% da população do planeta, alcançando 20 milhões de mortes entre os tempos finais da guerra e os meses iniciais de 1919.

Encontrando corpos castigados pelo conflito mundial e debilitados pela carestia, a Gripe Espanhola avançou os Continentes em três surtos epidêmicos, aportando no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, a bordo do navio Demerara, vindo de Liverpool, em 14 de setembro de 1918, depois de fazer escalas em Lisboa, Recife e Salvador. Em sua forma mais virulenta e contagiosa, a Gripe invadiu o país e se alastrou rapidamente do litoral aos sertões colocando em xeque as ações sanitárias e os saberes médicos do período.

“O numero de mortos foi grande, o de atacados assombroso. Raríssimos os que se podem gabar de ter passados incólumes pelas chammas da fogueira”, escreveu Eduardo Imbassahy sobre a Gripe Espanhola no Rio de Janeiro. (1)

A alta e rápida letalidade do vírus – que atingiu principalmente adultos entre 20 e 35 anos de idade – desafiava as terapêuticas conhecidas e disponíveis à época, tensionando práticas científicas e populares de prevenção e cura em meio ao pandemônio instaurado no país

Antitérmicos, analgésicos, antissépticos, sangrias e purgativos disputavam espaços de tratamento e profilaxia com vacinas, homeopatias, águas fluidificadas, rezas, passes, banhos quentes e tantas outras tentativas de burlar a enfermidade. Destes, a administração intensa de purgantes era o que provocava frequentes desmaios pelas ruas, confundindo-se com os próprios sintomas da gripe.

Em São Paulo, a marcha epidêmica iniciou seu flagelo nos primeiros dias do mês de outubro de 1918, espraiando-se pelas diversas localidades do estado. Em 15 de outubro, o Serviço Sanitário confirmou à população a existência da doença. Atingindo seu ápice entre os dias 23 de outubro e o transcorrer do mês de novembro de 1918, somente no dia 26 deste mês as autoridades paulistas noticiaram um declínio epidêmico.

Medidas como a publicação de boletins do Serviço Sanitário, a instalação de aparelhos telefônicos para transmissão de orientações e de relatos do quadro epidêmico e  a convocação do Secretário de Estado de Negócios do Interior às municipalidades e aos mais diversos setores da sociedade para a formação de Comissões de Socorros destinadas para assistência médica, internações, distribuição de  víveres e aviamentos de receitas, não foram o bastante para impedir a convulsão social, o medo e o sofrimento na capital e demais pontos do território paulista.

Se “cautela e canja de galinha não fazem a mal a ninguém”, na Gripe Espanhola este ditado popular foi tomado à risca!

Espaços e contatos circunscritos, relações sociais esgarçadas e, junto ao repouso e aos medicamentos, o leite e a carne de frango tornaram-se essenciais à recuperação dos gripados elevando mais e mais seus preços, deixando-os inacessíveis à maioria da população.

Os corpos febris que mais rapidamente tombaram gélidos foram os já descarnados em vida, débeis pela fome, muitos já acometidos por moléstias decorrentes de inanição e de moradias insalubres.

A inexistência de leis trabalhistas que garantissem a convalescença remunerada, a jornada de até 16 horas no chão de fábrica e os parcos salários– mesmo após as reivindicações da grande greve de 1917 -, fizeram de operários gripados a grande parcela de vítimas da Epidemia na cidade de São Paulo: trabalhavam enfermos sob o risco de condenar suas famílias à absoluta miséria.

Os jornais paulistanos estampavam manchetes policiais de gripados que, sob o delírio da febre ou da fome, atentavam contra a própria vida. E, nas páginas de propaganda, medicamentos como a Grippina dividiam espaço com a oferta de compostos e acessórios para solucionar a alopécia que acometia sobreviventes da Gripe.

Desabastecimento, saques e pilhas de cadáveres aguardando enterramentos passaram a compor a paisagem caótica paulistana durante os dias de combate à epidemia. Até o último dia de 1918, somaram-se oficialmente 5.331 mortes na cidade de São Paulo.

Segundo Arthur Neiva, Diretor Geral do Serviço Sanitário Paulista durante a Gripe Espanhola, “O historiador que, no futuro, procurar descrever as principaes epidemias que assolaram o Brasil, com muita difficuldade poderá fazer idéa da formidavel calamidade que foi a grippe epidemica.” (2)

Não restam dúvidas de que há muito a se desvendar sobre a Gripe Espanhola e seus desdobramentos na assistência pública à saúde no país. Pensar o Brasil em sua complexidade e dar destaque às regionalidades, como as franjas do interior paulista que ainda carecem de estudos sistemáticos sobre suas práticas médicas e sanitárias, apresentam-se como convite instigante para futuros estudos sobre a Epidemia que, há um século, abalou o mundo.

*Historiadora (FFLCH- USP), Pós-Graduanda do Programa de Saúde Pública (FSP-USP). Especialista em Educação Permanente em Saúde (UFRGS); Pesquisadora do Centro de Memória da FSP-USP e membro dos Grupos de Pesquisa História e Memória da FSP-USP e Salus – História da Medicina e da Saúde (FM-USP).

Notas

1-Imbassahy, Eduardo. Da grippe – etiologia, epidemiologia e prophylaxia. Rio de Janeiro, 1919. Tese de Doutoramento, Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, PP. 94-5

2-Meyer, Carlos Luiz.Teixeira, Joaquim Rabello. A Grippe Epidemica no Brasil e especialmente em São Paulo – Dados e informações. Casa Duprat, 1920. [Prefácio]